quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Características principais


A sua obra vem no seguimento do teatro ibérico popular e religioso que já se fazia, ainda que de forma menos profunda. Os temas pastoris, presentes na escrita de Juan del Encina vão influenciar fortemente a sua primeira fase de produção teatral e permanecerão esporadicamente na sua obra posterior, de maior diversidade temática e sofistificação de meios. De facto, a sua obra tem uma vasta diversidade de formas: o auto pastoril, a alegoria religiosa, narrativas bíblicas, farsas episódicas e autos narrativos.

Ilustração da edição original do Auto da Barca do Inferno
O seu filho, Luís Vicente, na primeira compilação de todas as suas obras, classificou-as em autos e mistérios (de carácter sagrado e devocional) e em farsas, comédias e tragicomédias (de carácter profano). Contudo, qualquer classificação é redutora - de facto, basta pensar na Trilogia das Barcas para se verificar como elementos da farsa (as personagens que vão aparecendo, há pouco saídas deste mundo) se misturam com elementos alegóricos religiosos e místicos (o Bem e o Mal).
Gil Vicente retratou, com refinada comicidade, a sociedade portuguesa do século XVI, demonstrando uma capacidade acutilante de observação ao traçar o perfil psicológico das personagens. Crítico severo dos costumes, de acordo com a máxima que seria ditada por Molière ("Ridendo castigat mores" - rindo se castigam os costumes), Gil Vicente é também um dos mais importantes autores satíricos da língua portuguesa. Em 44 peças, usa grande quantidade de personagens extraídos do espectro social português da altura. É comum a presença de marinheiros, ciganos, camponeses, fadas e demônios e de referências – sempre com um lirismo nato – a dialetos e linguagens populares.
Entre suas obras estão Auto Pastoril Castelhano (1502) e Auto dos Reis Magos (1503), escritas para celebração natalina, e Auto da Sibila Cassandra (1503), anunciando os ideais renascentistas em Portugal. Sua obra-prima é a trilogia de sátiras Auto da Barca do Inferno (1516), Auto da Barca do Purgatório (1518) e Auto da Barca da Glória (1519). Em 1523 escreve a Farsa de Inês Pereira.

Auto de Mofina Mendes, onde se inclui uma anunciação, de acordo com os temas marianos, gratos ao autor
São geralmente apontados, como aspectos positivos das suas peças, a imaginação e originalidade evidenciadas; o sentido dramático e o conhecimento dos aspectos relacionados com a problemática do teatro.
Alguns autores consideram que a sua espontaneidade, ainda que reflectindo de forma eficaz os sentimentos colectivos e exprimindo a realidade criticável da sociedade a que pertencia, perde em reflexão e em requinte. De facto, a sua forma de exprimir é simples, chã e directa, sem grandes floreados poéticos.
Acima de tudo, o autor exprime-se de forma inspirada, dionisíaca, nem sempre obedecendo a princípios estéticos e artísticos de equilíbrio. É também versátil nas suas manifestações: se, por um lado, parece ser uma alma rebelde, temerária, impiedosa no que toca em demonstrar os vícios dos outros, quase da mesma forma que se esperaria de um inconsciente e tolo bobo da corte, por outro lado, mostra-se dócil, humano e ternurento na sua poesia de cariz religioso e quando se trata de defender aqueles a quem a sociedade maltrata.
O seu lirismo religioso, de raiz medieval e que demonstra influências das Cantigas de Santa Maria está bem presente, por exemplo, no Auto de Mofina Mendes, na cena da Anunciação, ou numa oração dita por Santo Agostinho no Auto da Alma. Por essa razão é, por vezes, designado por "poeta da Virgem".
O seu lirismo patriótico presente em "Exortação da Guerra", Auto da fama ou Cortes de Júpiter, não se limita a glorificar, em estilo épico e orgulhoso, a nacionalidade: de facto, é crítico e eticamente preocupado, principalmente no que diz respeito aos vícios nascidos da nova realidade económica, decorrente do comércio com o Oriente (Auto da Índia). O lirismo amoroso, por outro lado, consegue aliar algum erotismo e alguma brejeirice com influências mais eruditas (Petrarca, por exemplo).

Sem comentários: